quinta-feira, 15 de maio de 2008

Vargtimmen, 1968 (A Hora do Lobo)



A perspectiva em qualquer situação é essencial para nos advertir em relação a possíveis contrariedades ao mundo racional. Ao adentrar o mundo de uma personagem, também nos comprometemos a vislumbrar suas características intrínsecas (que, obviamente nunca encontram reflexo na unidade lógica somente) e, portanto, a partilhar de sua composição cinérea, jamais composta da alvura de uma alma límpida ou da escuridão de um ser possesso.

E quanto mais desnudamos a alma de um indivíduo qualquer, mais somos influenciados a compor uma realidade intermediária, um misto inconsciente (mesmo que de forma transitória) de idéias que envolvem elementos das personalidades de ambos (nossa e do ser analisado), bem como as experiências conjuntas e formações individuais. As conclusões as quais chegamos, o processo dedutivo de conhecimento do objeto alvo, não podem ser analisados somente sob a ótica de um sujeito. A partir do momento em que nos comprometemos a realizar tal análise, alteramos todos os detalhes automaticamente. Grosseiramente, é como observar um delicado vaso de flores diante de um olhar de uma dama encantada com a formosura das pétalas expostas ou de um inseto em sua eterna luta pela sobrevivência em busca de alimento no mesmo microambiente. As duas coisas são observáveis, mas os pontos de vista são muito distintos. Naturalmente, entretanto, quanto mais ela estuda os insetos que ali vivem, mais sua perspectiva se torna abrangente.

A Hora do Lobo é um daqueles filmes que, ao nos depararmos com a melodia que anuncia o término da projeção e o iniciar dos créditos finais, leva a percepção de que não conhecemos... e não importa o quê, simplesmente não conhecemos. E como é lindo perceber isso através de uma obra prima como a que Bergman nos presenteia.

Contém spoilers:

A princípio, os enigmáticos personagens desfilam mediante palcos distintos. Um é exposto para conferir voz ao outro e compor uma sinistra melodia conjunta, orquestrada sob a égide da fronteira entre o racional e o irracional.
O semblante enfastiado de Alma introduz o prelúdio da perturbadora série de eventos que resultariam no desaparecimento misterioso do marido. As duas realidades se desencontraram no decorrer do tempo. A cronologia posterior será fundamental na aniquilação dessa perspectiva. E algumas simples letras mudam simplesmente tudo: falamos em fusão (subitamente nos vemos inclusive embebidos em seus lençóis obscuros) e não em fissão de pontos de vista.

Desse modo ocorre a delineação da estória. Na encruzilhada dos diversos cenários interpretativos, contemplamos um mundo analisado de um referencial externo a qual permite detectar um universo repleto de seres "desumanizados" e cruéis, representativos de épocas passadas de grande valor para os personagens, ações e eventos simbólicos e febris perante um processo de insanidade latente...bem como outro, paralelo e paradoxal, sob a forma de uma concepção segmentada, imersa na racionalidade questionável do mundo interno ao filme, contemplada pelos olhares e palavras de Alma.

No entanto, considero que A Hora do Lobo atingira seu objetivo de forma espetacular, seja através da reflexão produzida pela protagonista no trecho final (que nada mais é que o clímax da tensão quase insuportável desenvolvida por Bergman em toda projeção), seja pelo desvendar inquieto de uma realidade tórrida relativa às diversas faces da complexa cadeia de eventos abordados em mais uma obra prima deste magnífico diretor. Não há respostas simples para a realidade.


terça-feira, 13 de maio de 2008

Running Scared, 2006 (No Rastro da Bala)


Lembra daqueles lindos contos que você lia quando criança, embutidos em belíssimos livros de capas coloridas e repleto de fotos agradáveis? De um mundo encantado composto por bruxas malvadas, bichos papões, animaizinhos maléficos, duendes com faces horripilantes que nunca conseguiam vencer os cavaleiros com armaduras cintilantes ou as crianças arrependidas por não terem obedecido a seus pais? Hoje você acha essas intenções de caráter moral utópicas? Ou mais ainda, que essas historinhas "inocentes" muitas vezes moldam um mundo totalmente distinto da realidade que o cerca, xenófoba, e na qual não existem heróis, o mal por muitas vezes triunfa, o senso de justiça é obstruído e questionável e o machismo extremo predomina como ponto de vista ideal na sociedade? Ou por vezes começa a perceber que, vez ou outra, elas na realidade até se aproveitavam para estimular o consumo de doces e outras guloseimas através de seduções visuais (ou você acha que apesar de defenderem uma postura oposta e moralista não temos vontade de devorar um delicioso chocolate após lermos algumas delas?).

Agora imagine que você tenha um aparato cinematográfico e o poder de sua criatividade para desconstruir esse mundo, usando desde a elaboração dos personagens até as montagens e iluminação do cenário para ilustrar isso. Uma de suas opções é exagerar algumas características dessas estorinhas mantendo o moralismo para justamente mostrar o quanto são utópicas e absurdas (nesse caso, no filme as várias situações absurdas de risco de morte e o final do personagem de Paul Walker são ridículos justamente por isso, de acordo com esse ponto de vista) e uma outra é você utilizar meios mais explícitos para criticar a sociedade predatória cujos mecanismos de controle e sustentação são mais sofisticados e praticamente irreversíveis (por exemplo, substituindo os personagens das estórias infantis por outros mais representativos da sociedade e colocando-os em situações onde a moral é um pouco mais complexa e tortuosa que a normalmente discutida).

No meu ponto de vista, esses são alguns elementos explorados em No Rastro da Bala (Running Scared), cuja atmosfera mórbida e pesada transmuta o universo de fantasia infantil em algo pertencente a um universo do ideal masculino adulto e machista. É esse o universo na qual a atmosfera crítica reside contemplando seus mais variados absurdos, que bradam construindo seus pilares nas reflexões de situações tão absurdas que fazem o espectador pensar forçosamente em suas intenções.

De início analisemos os personagens... logo de cara observamos vários pontos interessantes.. vemos que a mulher é sexualizada, objetizada ou adota postura masculinizada agressiva a fim de sobreviver a situações de risco (a esposa de Gazelle) ou frágil e submissa (a mãe de Oleg) ou instrumento principal de "destruição" através de seu caráter mais sereno e sentimental (note a postura de Adelle perante as crianças, até mesmo seus cabelos amarrados e suas roupas inocentes..embora o casal seja pedófilo, é sempre ela quem está presente nas abordagens e controle porque a figura feminina inspira um caráter que a masculina não possui. Quando vemos uma mulher próxima a uma criança certamente não pensamos os horrores que passam por nossas cabeças quando vemos um homem desconhecido na mesma situação).

Os outros personagens são indivíduos pertencentes a nosso meio social, assustadoramente cada vez mais comuns - são gângsteres, assassinos, sequestradores, xenófobos, policiais corruptos, pedófilos, prostitutas, gigolôs, pais que batem em suas crianças e esposas, mães que vivem sob a égide do medo, filhos revoltados e assustados. ESSE é o mundo em que vivemos. Se não for o seu, certamente você conhece algum desses indivíduos simbolizados aí, ou alguém bem próximo que conhece.

No mundo de Kramer prostitutas se tornam protetoras (fadas, como expressas nos créditos finais), pedófilos se tornam sombras sobrenaturais na parede (ou algo parecido com ogres, que só na escuridão das sombras revelam seu verdadeiro caráter), gigantes malvados que aprisionam nossos heróis em gaiolas se tornam gângsteres e policiais corruptos..e por fim, nossos heróis tem características assustadoras (Oleg porta uma arma potente e a manipula, Gazelle parece não se importar com isso pois tem interesses egoístas mais importantes e talvez esteja anestesiado com o mundo que tem contato; Gazelle mata, sangra, abate, tortura e tem uma postura machista e xenófoba; seu filho mente, tem contato com um universo criminoso e muitas vezes nem é notado pelo pai em ambientes perigosos; mesmo a "inocente" Teresa mata duas pessoas). Estudar os personagens é tarefa muito interessante e que exige reflexão, material que podemos discutir bastante por aqui.

Uma estória tão simples esconde também muitos outros elementos interessantes. A montagem e a fotografia de Kramer são simplesmente extraordinárias. Por vezes até revelam um interessante paradoxo entre uma estrutura que parece um livro de estórias aberto (daqueles que as figuras são montadas na vertical quando abrimos a página, dando maior realismo ao livro) mas ao mesmo tempo refletem um universo distorcido e frenético despertado por algum tipo de entorpecente ou situação de tensão extrema do personagem a qual corresponde a visão que quer retratar. A ambientação é um outro ponto alto. As locações são filmadas de forma escura, às vezes com predomínio de algumas cores sobre as outras (mas normalmente escuras e tristes, o azul escuro, o vermelho, o amarelo, etc), sempre de forma a parecer sombrias, inquietantes, de forma a nos causar arrepios involuntários e nos sugar para a atmosfera do filme. Destaque para a cena em que Oleg e Joey conversam no carro. A iluminação dos diversos elementos das ruas provocam uma alternância entre o escuro e o claro no rosto de Oleg, captado de forma eficiente pelo diretor, de modo que seu caráter ambíguo (embora obviamente seja predominantemente positivo) se torna evidente simplesmente por sua expressão facial.

As atuações são muito boas, especialmente o papel difícil de Oleg (Cameron Bright), que reflete em sua face sentimentos de insegurança, revolta, coragem, horror, medo, tristeza e muitas outras de forma excepcional, com o odiado por muitos Paul Walker desempenhando o papel de forma muito correta e interessante (Walker lembra bastante um indivíduo marginalizado com seu modo de agir e falar) e os excelentes Palminteri e Johnny Messer. Nas mulheres, destaque para a excelente interpretação da pedófila Edelle por Elizabeth Mitchell.

Não conhecia o trabalho de Wayne Kramer, também diretor de Mindhunters (Caçadores de Mentes - 2004), The Cooler (The Cooler - Quebrando a Banca - 2003), Crossing Over (1996) e Blazeland (1992 - acredito que inédito no Brasil). Gostei muito, por todos os fatores que mencionei acima e com certeza vou assistir outros filmes..despertou muito meu interesse. Uma pena que não tenha encontrado qualquer informação sobre o último filme no Brasil. A propósito, o filme Caçadores de Mentes virará uma série de tv!!

Enfim, há muito o que se dizer sobre Running Scared... coisas que nem sequer citei aqui e a idéia é que, mesmo esse texto longo seja uma palhinha apenas, alguns fatores que escolhi dizer sobre a minha visão para compartilhar com vocês, mas há muito a ser explorado. Com a palavra sobre o filme, vocês... o "aperitivo" está na mesa.

Preste atenção: Uma das poucas referências explícitas da estória: Na cena em que Oleg está no banheiro da casa de Dex e Edelle, sombras sinistras de caráter e forma sobrenaturais podem ser visualizadas na parede durante toda a conversa no telefone com a Mrs. Gazelle, como se estivessem à espreita.

Porque não perder: Um filme muito interessante na qual não importa muito se você quer ver algo extremamente complexo ou simplesmente divertido, cheio de ação ou repleto de metáforas e simbologias, cheio de críticas sociais ou curtir uma pipoca enquanto assiste. É possível compreender o filme em várias instâncias e chegamos a conclusão de que todos esses gostos são atendidos de forma muito satisfatória e inteligente. Assista sem medo, você não vai se arrepender.


domingo, 11 de maio de 2008

Estômago, 2007


Definitivamente há vários tipos de poder em uma sociedade. Quando observamos o mundo, percebemos uma estrutura complexa composta por categorias que interagem o tempo todo e dependendo da situação predominam umas sobre as outras.

Todo ser humano possui habilidades, e a diversidade das características possíveis dentre os homens promove uma grande amplitude de resultados para essa interação, dependendo de como os indivíduos elaboram suas estratégias de conduta social.

Nesse contexto, "definir o que eu possuo de melhor" ou "como posso utilizar isso para meu benefício, sabendo que sou melhor que os outros nesse aspecto" e o principal e mais assustador: "como posso impor essa característica para que os outros sejam obrigados a me aceitar dentro do grupo e, de preferência, como ser dominante" são faces da mesma moeda. As diferentes interpretações dão conotações mais ou menos nobres dependendo do ponto de vista, mas estão todas presentes e no fundo representam a mesmíssima coisa. Coisa, convenhamos, até normal no mundo capitalista e competitivo em que vivemos.

Em Estômago, a gastronomia é a característica que simboliza o poder. Aos poucos, convivemos com o processo de descoberta da habilidade culinária por Nonato, sua apreciação, o longo processo de refinamento e finalmente a escolha do ambiente adequado para sua impugnação (e, em um nível mais elevado de "evolução do personagem", posteriormente, à adaptação do ambiente para a imposição da habilidade).

Nesse ponto, Nonato lembra os super-heróis com os quais tivemos a oportunidade de conviver em nossos sonhos infantis. Nordestino, visto com preconceito por toda a sociedade com a qual tem contato na cidade grande, o rapaz é vítima da ingenuidade (?) e da ausência de elementos básicos para sua sobrevivência - a princípio ele não tem casa, comida ou segurança.

A estória se divide em duas situações que se desenvolvem em linhas narrativas diferentes, mas relatadas de forma quase simultânea, separadas por um hiato cronológico. Desde o início o espectador sabe que as duas se entrelaçarão, mas não tem idéia de como isso vai acontecer.

Na primeira, Nonato chega à cidade se vê às voltas com os problemas da migração interna e a falta de dinheiro. Aos poucos percebemos que o universo do personagem se torna limitado pelas ruas do bairro onde se instala - se à princípio vemos um local repleto de prostituição, condições de higiene deploráveis e pessoas pobres e exploradoras, mais tarde, a ascenção social de Nonato não muda tanta coisa assim: o restaurante de nome sofisticado a qual passa a trabalhar mais tarde, embora um pouco melhor, ainda escancara algumas características que não negam sua origem: a prostituta que desfila livremente pela cozinha, as compras dos alimentos mais requintados no mercadinho local, o linguajar chulo do dono do restaurante e as tomadas que ilustram as portas do local fechado à noite são indicativos. No entanto, claramente tudo é retratado como uma melhoria de vida gritante para o personagem, o que não deixa de ser realidade segundo às circunstâncias. É ali também que temos contato com uma deliciosa salada de sotaques, personalidades e o aprendizado de vivência do protagonista.

Já a segunda é mais soturna e misteriosa. Ocorre em uma prisão onde Raimundo Nonato, aterrorizado, tem mesmo que mudar de nome (passa a se auto denominar Nonato Canivete) para conseguir respeito inicial dos presos. E o rapaz logo começa a mostrar seus dotes culinários se aproximando dos líderes poderosos de lá, mas mantendo o bom humor e algumas das características que o fez tão querido por todos, especialmente a humildade.

O impacto do cruzamento entre as duas estórias sem dúvida muda algumas visões sobre o acontecido e proporciona uma (re) análise de vários aspectos discutidos.

Ganhador da Mostra Internacional do Rio e inspirado no livro "Pólvora, Gorgonzola & Alecrim", Estômago é um filme repleto de ótimas atuações, humor não apelativo e conclusão sombria que merece atenção de quem se diverte com cinema e um bom entretenimento.
***/*****7,0/10

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Cassandra's Dream


Durante nossa vida, adquirimos alguns conceitos que parecem inatos, dadas as origens tão profundas e enraizadas no inconsciente. São aquelas definições que advém de idéias tão básicas que, mesmo em nossos mais profundos anseios de liberdade intelectual, prevalecem como inalteradas e qualquer um que defenda o absurdo de suas refutações observará imediatamente a repugnância a latejar nas veias da face ou no franzir do sobrolho do ouvinte.
Creio que nossa herança religiosa (especialmente no Brasil, com o predomínio dos princípios cristãos como sinalizadores de moral e definidores de objetivos) seja determinante na construção desses fundamentos básicos.
A família, por exemplo, bem como sua valorização e status adquirido ao se tornar chefe de uma é, pois, um atestado de normalidade. E temos que admitir que uma das coisas que o homem busca em sua existência é não ser notado por características que o desvalorizem perante o outro - e na mesma medida, ser valorizado pelo que possui melhor conceitualmente que a maioria.
Ao observarmos a perpetuação dessas idéias, nos surpreendemos com a facilidade da propagação entre crianças, adolescentes (e nessa fase, às vezes princípios radicalmente opostos aos citados são símbolos de rebeldia e, por conseguinte, aceitação diante de outros que vivem a mesma fase), pais e adultos. A família é central em nosso desenvolvimento, acolhedora diante de nossas fraquezas e fiel às nossas necessidades (e não se preocupe, o rebelde adolescente descobrirá isso com o tempo).
Woody Allen em O Sonho de Cassandra, inicia a estória retratando uma bela amizade entre dois irmãos, modelo da relação próxima do ideal. Distantes da perfeição comportamental e totalmente isentos da expectativa da conduta desejável perante a sociedade diante de situações difíceis, Allen faz questão de construir uma cumplicidade inequívoca entre Terry e Ian.
E ela chega a ponto de desviar os olhares de uma óbvia preferência da figura paterna pelo inteligente e aparentemente bem sucedido Ian em relação a Terry, que, ao contrário do despertar da ira, observa tudo conformado e tímido.
Mas Woody Allen ainda vai além, ao sugerir uma relação tão complexa, com o intuito de solidificar os princípios que regem o comportamento familiar dos protagonistas, convida o espectador a participar de um triângulo, ao, em vários momentos do filme deixar de apresentar elementos que comprovem a veracidade dos atos e dizeres dos personagens.
Por exemplo, em vários momentos só sabemos que Terry ganhou dinheiro nas apostas porque ele fala, e, dadas as circunstâncias mostradas, mesmo que dificilmente tal fato pareça aceitável, depois de algumas apostas, o personagem de Farrell demonstra sua sinceridade falando ao irmão que perdera uma alta quantia monetária e, consequentemente, ao espectador. Como não ganhar a nossa confiança por todas as falas anteriores?
O artifício também funciona perfeitamente quanto a Ian: quando faz a difícil confissão de estar roubando dinheiro do próprio pai (com surpreendente naturalidade), conferimos um voto ainda maior de confiança a dupla...simplesmente não há porque questioná-los.

E é justamente aqui que todos os efeitos negativos dos arraigados conceitos começam a aparecer. As dificuldades financeiras de Terry e a ambição de Ian levam os rapazes a construção de um terceiro vínculo interpessoal, a ser consolidado com alguém portador do atual objeto de desejo dos irmãos: o dinheiro.
Munido do domínio dos poderosos conceitos sociais discutidos e ciente do poder devastador do confronto com suas incoerências, Tio Howard (e note bem o valor "sanguíneo" do título sempre vinculado ao personagem) aproveita-se das falhas morais dos rapazes e de seus seguidos pedidos de dinheiro a fim de adentrar o universo terrivelmente cruel da discussão de valores sociais conflitantes e tirar proveito.
Presos em uma encruzilhada na escolha entre matar um desconhecido para encobrir as evidentes falhas de caráter do Tio em nome da confiança e da família e perder definitivamente a importância diante de tal figura (o que representaria a falência das regras de conduta familiar), eles são direcionados perspicazmente por Howard a aceitar as condições bizarras do acordo. A família em primeiro lugar.

No entanto, o colapso da troca de valores causa uma destruição tão incrivelmente danosa que, no momento exato do acontecimento (e falo aqui da cena da chuva, debaixo da árvore, pois considero esse trecho o deflagrador dos eventos posteriores, que só representam reflexos) já sabemos que algo terrível advirá, seja através da fragilidade psicológica de Terry ou do incômodo evidente de Ian.
A cena do assassinato adentra o universo Hitchcockiano: tensa, belíssima e elegante, tornando o previsível deliciosamente imprevisível através da postergação do inevitável. Desde a frustrada tentativa na casa do pobre homem até os passos apressados, a desconfiança de Martin de estar sendo seguido na efetiva cena do crime (e, claro, do óbvio, que aconteceria inevitavelmente) e a cena anterior do encontro imprevisível da vítima com Farrell no bar. Você chega a roer as unhas...Algo tem que dar errado...tem que dar...mas não dá.
Uma vez que a semente da destruição se instala, as alternativas para a contenção de seu crescimento se tornam ínfimas. E o que emerge dela é o caos.
Um caos instantâneo e ansioso, que envolve rapidamente Terry (em uma atuação estupenda de Farrell, diga-se de passagem), causando uma crise nervosa intensa e perpétua e, embora menos visível, enfraquece e consome o ambicioso Ian, gerando uma tensão crescente entre os personagens.
Finalmente quando a cortina desce e o show termina como um estampido seco sobre a mente cansada e desesperançosa do espectador
bem como um gosto amargo na boca, de forma extremamente rápida, este último percebe que há mais estória não retratada que retratada no filme.
Não, não é intenção de Woody satisfazer os anseios psicóticos de quem acompanha a estória com um banho de sangue e lágrimas, mas dilacerar nosso cérebro com duas armas infintitamente mais poderosas: a imaginação e a reflexão.
****/***** 8,1/10 Top 250 #162

domingo, 4 de maio de 2008

Le Notti Bianche (1957)


Seria o amor um sentimento explicável, com características simples e descritíveis, existente em sua plenitude somente em um mundo onde a realidade não predomina sobre a imaginação?
O que dizer então de suas gradações - o amar demais, por exemplo - uma entrega total a subdivisão de um fluxo consciente utópico, onde o real não existe mais? (embora cá entre nós seja praticamente impossível imaginar algo em que ambas as esferas: realidade e fantasia sejam tão disjuntas a esse ponto).
Em Noites Brancas, uma obra prima de Luccino Visconti indicada por meu amigo Foras, todos os estágios desse sentimento controverso são expostos, independente de seus potenciais destruidores ou compositores na determinação de nossa felicidade. Felicidade esta também instável, frágil, perturbada. Visconti não nos poupa nem um segundo durante os 107 minutos de projeção. O diálogo de sombras com o espectador, as alternâncias entre o preto e o branco, o cenário tristonho, as expressões impotentes dos personagens diante de algo tão grandioso...tudo fala através do filme, tudo compõe a reprodução dos fragmentos que remetem a tal sentimento quando analisados como um todo. É preciso cada gota da construção dos planos e dos artifícios cinematográficos para compor uma estória que ilustra algo tão difícil de se dizer em palavras.
Os personagens são pessoas simples. Mário é tão simples que no início do filme, Visconti simplesmente se recusa a lhe conferir imponência sobre o cenário repleto de sombras e solidão. Ele é filmado à distância e tragado por ela, sem qualquer relevância em relação a um cão à procura de alimento ou a um grupo de pobres a perambular pelas ruas, ou mesmo uma pequena ponte erguida sobre um riozinho que se estende paralelamente ao asfalto.
Tão simples quanto ele parece ser a adorável Natalia, cuja dilaceração psicológica avançada (porém ainda assim progressiva) perante a ação da emoção produzida pelo amor que sentia por um homem misterioso é tão evidente que ficamos imaginando os limites e prejuízos que podem advir de tal sentimento. A percepção de Mário não é de todo incorreta: insanidade parece ser uma possibilidade. Erra, porém, diante do poderoso "amor", que mal sabe ele a princípio, já o possuía, cegava e corrompia todo seu ser.
E quando totalmente à mercê de tal adversário, Mario decide lutar em um round injusto, suas pequenas vitórias representam momentos belíssimos. O que dizer da cena da dança no bar, coroada com uma beleza incomparável, mas impregnada com as mesmas contradições discutidas anteriormente: as diversas pessoas que se interpõem entre os dois contrastada com a felicidade estampada nos olhares, que não deixam de se cruzar como se o fluxo de energia fosse constante, a linda melodia contagiante contraposta com o incômodo da moça em não saber dançar e os movimentos desajeitados de Mario e Natalia, refletindo em cada segundo nos passos, o sentimento.
Ou dos inúmeros planos em que cenas se entrecruzam em microambientes distintos, cuidadosamente mostrados por Visconti como porções que captam todos os elementos em conjunto?
A conclusão, por mais que sombria, também é contraditória, de certo modo. E aqui, recomendo a quem não assistiu o filme a parar por aqui e ir correndo procurar esse magnífico exemplar de como a arte pode ser perfeita. Seria a personagem de Natalie cruel o suficiente para envolver Mario em um ciclo de autodestruição e frustração infinito ou portadora de um amor tão infinito que era capaz de resistir a todos os tipos de tentações e manter a força perante o amado, mesmo com a distância e a incerteza de sua volta?
E o personagem de Mastroianni, não menos controverso, com relação a linda moça morena que parece encantada com ele, mas sofre de sua fúria incontida por um amor não correspondido em relação a outra mulher? Só há espaço no coração para um grande amor? Seria o final tão questionado pela simpatia de tal protagonista uma punição exatamente pelo descaso com relação a outras relações que poderia ter desenvolvido?
*****/***** 8,6/10 Top 250 #88